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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Síntese da relação entre autismo, nazismo e fascismo


O Blog do Bassa vai tratar nesta publicação sobre a relação entre autismo, nazismo e fascismo.

A relação não é direta, mas existem interseções históricas e ideológicas que precisam ser esclarecidas.


O autismo na era nazista: perseguição e eugenia

Durante o regime nazista (1933–1945), a Alemanha aplicou políticas eugênicas com base na ideia de “pureza racial” e “aperfeiçoamento biológico da sociedade”.

  • Pessoas com deficiências físicas e mentais — incluindo muitas que hoje seriam reconhecidas como autistas — foram consideradas “vidas indignas de serem vividas” (Lebensunwertes Leben).
  • Essas pessoas foram vítimas do Programa T4, um projeto de extermínio “médico” que assassinou mais de 200 mil pessoas com deficiência em hospitais e clínicas.
  • O diagnóstico de autismo ainda não existia formalmente na época (Hans Asperger só descreveu o “autismo de alto funcionamento” em 1944), mas muitas crianças que exibiam traços autistas foram incluídas entre as vítimas, sob categorias como “retardo mental”, “comportamento anormal” ou “personalidade degenerada”.

Curiosamente, Hans Asperger, o pediatra austríaco que deu nome à “síndrome de Asperger”, teve ligações ambíguas com o regime nazista.

Pesquisas recentes (como as de Herwig Czech, 2018) mostram que Asperger cooperou parcialmente com políticas nazistas, enviando algumas crianças sob seus cuidados para a clínica Am Spiegelgrund — onde foram mortas.

Entretanto, ele também protegeu algumas crianças de serem levadas, o que torna sua figura historicamente complexa.


O fascismo e a negação da diferença

O fascismo, tanto na Itália quanto em outras expressões políticas, compartilha com o nazismo uma ideologia de uniformidade, hierarquia e culto à força.
Esses regimes:

  • rejeitavam a diversidade humana, física, intelectual e comportamental;
  • enalteciam o corpo e a mente “fortes”, a disciplina e a obediência;
  • viam pessoas com deficiência como “fardos” ou “degenerações” a serem eliminadas ou escondidas.

Assim, o autismo, como forma de neurodiversidade, era incompatível com o ideal fascista de um corpo social homogêneo e produtivo.

O fascismo, em essência, nega a alteridade, enquanto o reconhecimento do autismo parte da valorização da diferença e singularidade.

Leituras contemporâneas e a luta anticapacitista

Nos dias de hoje, estudiosos do autismo e da neurodiversidade (como Nick Walker e Ari Ne’eman) destacam que:

  • o movimento anticapacitista e a neurodiversidade representam o oposto do fascismo, pois afirmam o valor da diferença;
  • políticas que tentam “normalizar” ou apagar o autismo por meio de coerção comportamental (como certas vertentes da terapia ABA rígida) às vezes são criticadas como eco autoritário, embora não sejam comparáveis moralmente ao fascismo.

Ou seja, o vínculo entre autismo e fascismo hoje aparece como alerta simbólico:

Qualquer sistema que nega a dignidade das pessoas por não se encaixarem em um padrão “normal” ecoa a lógica fascista da exclusão.

Aspecto

Nazismo/Fascismo

Relação com Autismo

Ideologia

Eugenia, pureza, normalização

Respeito as diferenças, acolhimento da pluralidade de idéias, afirmação da neurodiversidade

Práticas

Esterilização e extermínio     de  pessoas  com deficiência

Autistas entre as vítimas do Programa T4

Conceito  indivíduo

Homogêneo e obediente

Autismo simboliza diversidade e singularidade

Legado histórico

Violência e apagamento

Resistência e valorização da neurodiversidade



Benito Mussolini e Adolf Hitler (reprodução)


Linha do tempo: Autismo, Nazismo e Neurodiversidade

 1900–1930: o contexto antes do autismo

  • Movimento eugenista cresce na Europa e nos EUA, defendendo o “aperfeiçoamento” da humanidade por meio da exclusão de pessoas com deficiência, pobreza ou doenças mentais.
  • Médicos e psiquiatras classificavam comportamentos hoje entendidos como autistas como “idiotia”, “demência precoce” ou “degeneração mental”.
  • A ciência ainda via a diferença neurológica como falha biológica, não como diversidade humana.

1933–1945: Nazismo, eugenia e o Programa T4

  • O regime de Adolf Hitler implementa a Lei para Prevenção de Descendência com Doenças Hereditárias (1933), que autorizava a esterilização compulsória de pessoas com deficiências.
  • A partir de 1939, começa o Programa T4: extermínio de pessoas com deficiência em clínicas e hospitais. Estima-se 200 mil mortes, incluindo muitas crianças com características que hoje seriam descritas como autismo.
  • A diferença mental era vista como “custo” e “ameaça” à pureza da raça.

1943–1944: Leo Kanner e Hans Asperger

  • 1943: O psiquiatra Leo Kanner, nos EUA, publica Autistic Disturbances of Affective Contact, descrevendo 11 crianças com características específicas de autismo.
  • 1944: Hans Asperger, em Viena (então sob domínio nazista), descreve crianças com “autismo de alto funcionamento”.
    • Pesquisas modernas (Herwig Czech, 2018) revelam que Asperger colaborou parcialmente com o regime nazista, enviando algumas crianças ao centro Am Spiegelgrund, onde foram mortas.
    • Ao mesmo tempo, ele protegeu outras de serem executadas, o que torna seu papel ambíguo.
  • O termo “síndrome de Asperger” só se popularizaria décadas depois, mas nasce em meio à ideologia nazista da “normalidade social”

 1945–1960: Pós-guerra e o apagamento

  • Após o Holocausto, o mundo descobre as atrocidades eugênicas do nazismo.
  • O autismo é estudado de forma limitada, muitas vezes confundido com esquizofrenia infantil.
  • Ainda predominam visões patologizantes — o autista como “doente” ou “retardado”.
  • A ética médica começa a se reformular com o Código de Nuremberg (1947), que proíbe experimentos desumanos e reforça a dignidade humana.

1960–1980: culpabilização e mudança de paradigma

  • A psicanálise populariza a ideia das “mães-geladeira” (Bruno Bettelheim), culpando as mães por causarem o autismo com frieza emocional.
  • Essa teoria reforça o estigma e o sofrimento das famílias.
  • Nos anos 1970–80, Lorna Wing e Uta Frith retomam os estudos de Asperger e definem o “espectro autista”, reconhecendo diferentes graus e formas de expressão.
  • Começa uma virada científica: do “defeito” à diferença cognitiva.

 1990–2000: neurodiversidade e direitos

  • Surge o movimento da neurodiversidade, liderado por autistas como Judy Singer, Jim Sinclair e Ari Ne’eman.

    • O lema: “Nada sobre nós sem nós.”
    • A diferença neurológica é vista como variação humana natural, não doença.

O termo “síndrome de Asperger” entra no DSM-IV (1994), mas depois é incorporado ao espectro do autismo no DSM-5 (2013).

  • A internet ajuda a criar comunidades autistas e ativismo global.

 2000 – memória, ética e inclusão

  • Pesquisas históricas revelam a ligação entre a medicina do autismo e o nazismo (Edith Sheffer, Asperger’s Children, 2018).
  • O movimento anticapacitista denuncia resquícios de pensamento eugênico em práticas que tentam “corrigir” o comportamento autista.
  • Hoje, o autismo é reconhecido como expressão legítima da neurodiversidade humana.
  • A luta contemporânea é por inclusão, acessibilidade e autodeterminação, em oposição total às ideologias de uniformidade e exclusão.

Síntese ética

O nazismo e o fascismo buscaram eliminar a diferença.

O autismo, em sua essência, é a afirmação da diferença.


A memória histórica dessa relação é um alerta permanente contra qualquer forma de biopolítica excludente ou normalização coercitiva.

Indicação de livro:



O livro Autismo Sem Máscara, escrito pelo psicólogo social Devon Price, é uma obra essencial para compreender outra faceta do Transtorno do Espectro Autista (TEA): a de quem vive no espectro e, apesar disso, consegue passar despercebido no cotidiano, escondendo (ou “mascarando”) suas características autistas.


O fenômeno do “autismo mascarado”

A premissa central da obra é que nem todas as pessoas autistas são facilmente identificáveis. Muitas delas não se encaixam no estereótipo tradicional – como aquelas personagens de filmes e séries que têm dificuldades severas de comunicação e socialização. Por conta da pressão social e do desejo de pertencer a grupos, essas pessoas utilizam estratégias conscientes ou inconscientes de camuflagem, adaptando comportamentos, gestos, linguagem corporal e expressões sociais para parecerem “neurotípicas”.


Origens e consequências dessa camuflagem

Ao longo da obra, Price explica como essa camuflagem surge e se desenvolve desde a infância. A necessidade de se ajustar às normas sociais pode começar no ambiente escolar e familiar e acompanhar a pessoa por toda a vida. A longo prazo, isso gera esgotamento emocional, estresse, ansiedade, depressão e a sensação de repressão da própria identidade

Essas estratégias de “fantasias sociais” podem incluir:

  • Espelhamento de comportamentos sociais;
  • Suppressão de interesses específicos ou estereotipados (stims);
  • Imitar expressões emocionais e linguagem que não são naturais;
  • Adotar rotinas e gostos “aceitos” para parecer “normal”.

Autoconhecimento como ponto de partida

Uma das mensagens mais poderosas do livro é o chamado ao autoconhecimento. Price convida o leitor a perceber que camuflar não é algo neutro: é uma adaptação à expectativa dos outros e, muitas vezes, um ataque à própria autenticidade. 

A aceitação pessoal e a compreensão da própria neurodivergência são passos fundamentais para viver com menos sofrimento e mais alinhamento com quem somos.


Perspectiva sociopolítica e neurodiversidade

“Autismo Sem Máscara” não é apenas um relato individual — também é uma análise crítica da sociedade contemporânea, que ainda valoriza demais padrões uniformizados de comportamento. Price defende uma visão baseada na neurodiversidade, que reconhece e valoriza a variação cerebral humana como parte natural da vida.


Estrutura do livro e recursos oferecidos

A obra se destaca por combinar:

  • Relatos reais de pessoas autistas que se reconhecem no conceito de camuflagem;
  • Estudos de psicologia social que explicam o fenômeno do mascaramento;
  • Dicas práticas para buscar autoconhecimento e reduzir o impacto psicológico da camuflagem;

Tudo isso em um tom acessível e empático — ideal tanto para diagnosticados tardios quanto para familiares, amigos e profissionais da área da saúde e educação.


Resumindo:

“Autismo Sem Máscara” é um livro que vai além da biografia: é um manifesto sobre autenticidade, identidade e aceitação. Ele mostra que ser autista não significa ser apenas aquilo que saltam aos olhos, mas inclui um universo interno vasto — muitas vezes escondido por trás de máscaras construídas para sobreviver em um mundo neurotípico. Em última instância, a obra é um convite ao respeito à diversidade humana e ao direito de ser quem realmente somos.